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Transparência Brasil mapeou os contracheques disponíveis de mais de 16 mil magistrados em 26 cortes do País; cifra acima do limite constitucional é maior do que a de Ministérios do governo
A estátua da Justiça, em frente ao Supremo Tribunal Federal Foto: Dida Sampaio / Estadão
É um mandamento constitucional: a remuneração dos ocupantes de cargos públicos não pode ultrapassar o valor pago mensalmente aos ministros do Supremo Tribunal Federal.
A regra, prevista no artigo 37 da Constituição como forma de limitar os supersalários na administração pública, tem sido sistematicamente burlada pelos tribunais estaduais do País inteiro. Levantamento realizado pela Transparência Brasil, obtido pelo Estadão, revela que pelo menos R$ 4,5 bilhões foram pagos a juízes e desembargadores acima do teto constitucional no último ano.
A cifra estimada no estudo pode ser ainda maior. Isso porque os dados disponíveis não estão completos e há erros nos registros oficiais cadastrados pelas cortes no sistema do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
A Transparência Brasil conseguiu reunir dados completos de doze meses de contracheques dos magistrados em 18 dos 27 tribunais estaduais do País, em 2023. O teto do funcionalismo no ano passado era de R$ 39,3 mil até março e R$ 41,6 mil a partir de abril.
Procurado, o CNJ afirmou que “os indicativos de irregularidade na obediência ao teto remuneratório são apurados em procedimentos próprios pela Corregedoria Nacional de Justiça”.
O Conselho ainda disse que o teto remuneratório só é aplicado ao subsídio (salário).
São justamente os penduricalhos pagos a título de indenizações e outros benefícios que elevam as remunerações dos juízes para além do valor recebido por ministros do STF. (Leia a resposta completa do CNJ abaixo).
Cinco cortes (Distrito Federal, Mato Grosso, Amapá, Pará e Paraíba) deixaram de divulgar até três meses de salários, outras três (Ceará, Tocantins e Sergipe) apresentaram ao Conselho valores divergentes aos efetivamente pagos aos seus membros.
O Judiciário do Piauí foi excluído da análise por não publicar os contracheques nominais.
“Apesar das ressalvas, o resultado é expressivo e reforça o caráter meramente decorativo do teto”, constata o estudo.
Todos os tribunais mapeados pelo levantamento pagaram salários médios brutos acima do teto constitucional.
Os dados mostram que um em cada três magistrados teve holerite médio acima de R$ 70 mil e 565 membros receberam em suas contas valores médios superiores a R$ 100 mil.
O Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TJMS) é o que paga os maiores contracheques extra teto a juízes e desembargadores: R$ 85,7 mil em média.
A Corte de Amazonas tem o menor vencimento médio, ainda assim são R$ 51 mil em salários brutos aos seus membros.
O pesquisador Cristiano Pavini, que integra a equipe de autores do estudo, aponta a existência de 2.600 rubricas orçamentárias no Poder Judiciário que se convertem em ganhos financeiros para os magistrados, os chamados “penduricalhos”.
“São recursos que poderiam estar sendo reinvestidos pelo Judiciário na ampliação de seu quadro. Em vez de remunerar muito bem alguns membros, você poderia remunerar bem mais membros, o que resultaria em um Judiciário mais célere e eficaz”, afirmou.
A conta desenvolvida pela Transparência Brasil foi aplicada mês a mês nos holerites de 16.892 magistrados estaduais.
Dentre eles, 78% têm dados completos de 12 meses da folha de pagamento. Em valores gerais, 78 juízes e desembargadores receberam mais de R$ 1 milhão acima do teto durante o ano de 2023.
Apenas 3,3% (434 pessoas) do grupo dos 13 mil não tiveram ganhos extra teto na somatória do ano.
“O ponto principal é que se criou uma cultura no Judiciário e no Ministério Público de maximização de benefícios. Ambas as carreiras competem entre si para ver quem tem a melhor remuneração conseguindo assim alcançar patamares mais avançados de ganhos a despeito do que dizem as legislações e do que seria moral nesse recebimento”, disse Pavini.
Como é notório, os penduricalhos nascem em decisões e portarias que são compartilhadas por diferentes categorias.
As carreiras públicas ainda pressionam o Congresso e os seus órgãos de controle por mais benefícios que turbinem os salários no fim do mês. Os “penduricalhos” que estão na fila para serem aprovados, como o chamado quinquênio, podem ampliar os gastos com esse tipo de pagamento e a desigualdade de remuneração entre os Poderes.
“Essa cultura faz com que, cada vez mais, essas carreiras sejam muito bem remuneradas acima do que o teto prevê”, avaliou Pavini.
“Você tem o Judiciário e o Ministério Público como um meio de enriquecimento dos seus integrantes”, completou.
Gasto de tribunais com salário extra teto é maior que orçamento de 14 ministérios
Os R$ 4,47 bilhões pagos fora da regra constitucional aos magistrados brasileiros seriam suficientes para custear 555,5 mil famílias beneficiárias do Bolsa Família por 12 meses, considerando o valor mensal médio de R$ 670 repassado em 2023.
Os dados ainda revelam que a despesa extra teto do Poder Judiciário estadual é superior ao orçamento de 14 ministérios, incluindo o de Meio Ambiente e o do Planejamento.
O relatório utilizou as informações reunidas pelo DadosJusBr, projeto da Transparência Brasil que coleta, padroniza e divulga contracheques do sistema de Justiça.
O repositório mantido pela ONG estrutura os dados do Painel de Remuneração do Judiciário do CNJ, que sistematiza as informações enviadas mensalmente pelos tribunais.
A metodologia adotada pela Transparência Brasil excluiu do cálculo salarial a gratificação natalina (equivalente ao 13º salário) e o adicional de um terço de férias por serem benefícios garantidos aos magistrados pela Constituição e pagos também aos trabalhadores em regime da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT).
Para aferir o valor pago aos juízes fora do limite constitucional, os pesquisadores subtraíram do total o desconto identificado na folha como “abatimento do teto”, ou seja, o valor que é retido da remuneração bruta quando esta ultrapassa o salário de ministro do STF.
O estudo, por outro lado, levou em consideração a indenização de férias – quando servidores deixam de gozar do benefício para “vendê-lo” ao tribunal –, pois os magistrados possuem dois meses de descanso anual, além do recesso judiciário.
Na avaliação dos autores do levantamento, essa prática “cria condições favoráveis à conversão (do direito ao descanso) em pecúnia (salário) como forma de inflar seus recebimentos”.
A ONG também levou em consideração os salários dos aposentados porque o Painel de Remuneração do CNJ não os distingue em relação aos membros ativos.
O CNJ determina que os tribunais do País enviem os dados dos holerites ao final de cada mês, mas a regra é descumprida pelas instituições.
Um outro estudo realizado pela Transparência Brasil mostra que, nos últimos sete anos, 76 órgãos deixaram de repassar informações referentes a 501 meses.
Proposta para colocar fim a supersalários está parada no Senado
Está sob responsabilidade do Senado, desde julho de 2021, o projeto de lei (PL) que propõe o fim dos supersalários no funcionalismo público.
A Câmara aprovou uma proposta relatada pelo ex-deputado Rubens Bueno (Cidadania-PR) que reconhece 32 tipos de pagamentos passiveis de serem adicionados aos salários dos servidores na forma de indenizações, direitos adquiridos ou ressarcimentos.
Outras rubricas foram vetadas pelos deputados. O texto ainda limitou os valores de alguns benefícios, como o auxílio-creche.
“Não há uma guerra contra os salários de magistrados. Cada poder decide os salários dos seus ocupantes. Nós somos contra penduricalhos para engordar salários fugindo daquilo que deveria ser uma política salarial de subsídio de magistrados. O penduricalho é uma vergonha para o Judiciário brasileiro”, completou Bueno.
O ex-deputado avalia que a paralisação do texto no Senado pode ser fruto do lobby de entidades organizadas da magistratura.
O novo relator do projeto de combate aos supersalários é o senador Eduardo Gomes (MDB-TO). Em maio deste ano, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), afirmou que discutiria com os líderes da casa a retomada do projeto, mas não houve encaminhamento público desde então.
Procurado, o senador Eduardo Gomes afirmou que há um acordo para votar conjuntamente em plenário o PL dos supersalários e a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que cria uma parcela mensal para ser paga aos magistrados a título de valorização de tempo de serviço, o chamado quinquênio. O senador também é o relator da PEC.
“É uma ambiência que há entre os dois projetos para que haja equilíbrio. Só tem a possibilidade de aprovar a valorização do tempo de magistratura se nós fizermos as modificações nesta questão do extra teto”, afirmou o senador.
A PEC está pronta para ir a plenário desde maio deste ano. O senador afirmou que as duas propostas devem ser analisadas após as eleições municipais.
Caso passe pelo crivo do Congresso Nacional, a proposta que retoma o quinquênio pode trazer um impacto anual de até R$ 40 bilhões, a depender da possibilidade de outras carreiras serem beneficiadas, segundo estimativa do governo.
O texto estabelece um acréscimo de 5% nos salários a cada cinco anos, até o limite de 35%. O valor será pago sem ser computado dentro do limite do teto salarial.
“Falta disposição política para reconhecer que há uma defasagem (inflacionária) nessas categorias, que é preciso equacionar isso na medida das possibilidades, mas que também é preciso regulamentar esses penduricalhos porque, do contrário, a gente fica nessa situação insustentável”, avaliou Acácio Miranda, que é doutor em direito constitucional pelo IDP.
“O juiz precisa ser bem remunerado, mas do ponto de vista da ética eu discordo dessa remuneração (extra teto) porque eles (juízes), ao invés de colocar o dedo na ferida (e regulamentar a correção salarial), vão dando voltinhas e criando estratagemas e subterfúgios para ir aumentando essa arrecadação”, completou.
Confira a resposta completa do CNJ:
Os indicativos de irregularidade na obediência ao teto remuneratório são apurados em procedimentos próprios pela Corregedoria Nacional de Justiça, cabendo medidas junto aos tribunais para as correções que sejam necessárias.
Nos termos da Portaria n. 63, de 17 de agosto de 2017, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) é responsável pela publicação das planilhas recebidas dos tribunais brasileiros.
Assim, as informações nas planilhas são de responsabilidade de cada órgão. Por lei, a disponibilidade dos dados deve ser feita nos sites dos próprios tribunais.
O painel do CNJ busca centralizar essas informações, mas, de fato, não há impositivo legal para que os tribunais o façam.
Os pagamentos de subsídio e benefícios à magistratura já são regulamentados pelo CNJ, com as modificações necessárias sempre que surjam novas leis ou as leis atuais sejam alteradas ou atualizadas.
Redação CNPL sobre artigo de Weslley Galzo
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