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Em meio ao aumento de processos contra planos de saúde, as maiores operadoras do País têm descumprido com frequência decisões judiciais, inclusive aquelas emitidas em caráter de urgência, segundo levantamento inédito realizado com base em milhares de processos movidos na Justiça Paulista no ano passado.
Ao analisar mais de 4 mil ações protocoladas no segundo semestre de 2023 no Foro Central Cível (Fórum João Mendes) contra as cinco operadoras com maior número de beneficiários na capital paulista, a reportagem encontrou centenas de descumprimentos judiciais, alguns deles relacionados a tratamentos para doenças graves, como câncer e problemas cardíacos.
O número de decisões desrespeitadas pode ser ainda maior já que alguns processos ainda não haviam sido julgados no momento da análise ou estavam em segredo de Justiça.
Foram ao menos 201 casos de desobediência por parte de Amil, Bradesco Saúde, Prevent Senior e SulAmérica encontrados pela reportagem, além dos mais de cem casos de desrespeito às ordens judiciais por parte da NotreDame já revelados em reportagens publicadas em janeiro, totalizando mais de 300 casos de descumprimento por parte das cinco maiores operadoras em atuação na cidade de São Paulo.
Juntas, elas são responsáveis pela saúde de 5,8 milhões de paulistanos (ou 60% do total de habitantes da capital que têm plano de saúde).
As operadoras dizem que respeitam as decisões judiciais e que eventuais atrasos no cumprimento das ordens devem-se, em partes, a dificuldades logísticas e burocráticas, como demora no prazo de importação de medicamentos.
Entre os casos de descumprimento, há tanto demandas relacionadas a negativas de cobertura de tratamentos e medicamentos quanto questões contratuais, como reajustes exorbitantes de mensalidades vetados pela Justiça ou o restabelecimento de planos cancelados unilateralmente pela operadora.
Entre os processos descobertos pela reportagem, há casos de pacientes acometidos por problemas cardíacos graves ou câncer, com risco de vida, que, mesmo com liminares favoráveis, não conseguiram o cumprimento da decisão no tempo estipulado pelo juiz.
Na maioria dos casos analisados, a operadora só cessou o descumprimento após alguma medida mais extrema adotada pelo Judiciário, como aumento da multa por descumprimento ou bloqueio judicial de valores das contas bancárias das empresas.
Mesmo assim, há casos em que o descumprimento durou meses e, em um dos processos, ultrapassou o período de um ano.
Há processos também em que o aumento da multa não foi suficiente para fazer a parte ré cumprir a determinação da Justiça.
Em decisões judiciais analisadas para a confecção da matéria, juízes relatam o desafio de fazer os planos de saúde cumprirem suas decisões mesmo após tentarem aumentar as sanções.
“Diante do grave estado de saúde do autor e tendo em vista que a ré não cumpriu até agora a ordem emanada deste juízo, sendo ineficaz a multa coercitiva para o caso em questão, defiro a internação domiciliar do autor em regime de home care, mediante constrição do valor integral e necessário via SISBAJUD (sistema que permite ao Poder Judiciário realizar bloqueios financeiros)”, determina o juiz Miguel Ferrari Junior, da 43ª Vara Civel do Foro Central Cível, em um processo movido contra a Amil.
Em outra ação, contra a SulAmérica, a juíza Larissa Gaspar Tunala, da 38ª Vara Cível, determina bloqueio judicial de até R$ 422 mil da operadora para possibilitar a cirurgia cardíaca de uma paciente após repetidos descumprimentos por parte da empresa.
“A requerida (SulAmérica) não cumpriu a determinação judicial, reiterada duas vezes na ação principal […]. Dessa forma, não resta alternativa que não o arresto cautelar dos valores, a fim de viabilizar o tratamento da autora”, destaca a magistrada na decisão.
Na peça, ela diz ainda que há urgência diante da piora progressiva dos sintomas da paciente.
Muitos juízes, no entanto, tentam outras estratégias antes de determinar o bloqueio judicial de valores, visto como medida extrema e usada apenas após esgotadas as demais possibilidades.
Antes disso, os magistrados costumam, além de aumentar a multa diária, aplicar penalidades extras por ato atentatório à dignidade da Justiça e encaminhar o caso ao Ministério Público para investigação de crime de desobediência, que pode ter como pena a detenção dos responsáveis pela companhia.
Ainda assim, dizem advogados, tais medidas nem sempre surtem efeito. Os valores das multas costumam ser baixos se comparados ao custo do tratamento devido.
Além disso, muitas operadoras tentam reverter a cobrança das penalidades.
“As operadoras não estão com receio de descumprir porque, às vezes, as multas aplicadas pelos juízes de primeira instância são reduzidas, vão ficando irrisórias para um plano de saúde. Então, para eles, é como se valesse a pena descumprir e pagar multa”, diz a advogada Camila Varella, presidente da Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência da OAB-SP e sócia do Varella Guimarães Advogados.
Em um dos processos, por exemplo, embora a operadora tenha descumprido a decisão por pelo menos um mês, com multa estimada de R$ 60 mil, o juiz Cesar Augusto Vieira Macedo, da 44ª Vara Cível, acolhe parcialmente um recurso da empresa que pedia a extinção da cobrança.
Ele não cancela a punição, mas reduz o valor para R$ 30 mil sob a justificativa de que “a multa alcançou valor excessivo” e que a redução se dá “para que não ocorra enriquecimento sem causa do exequente e em respeito aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade”.
Há, por outro lado, casos em que os magistrados rejeitam os recursos das operadoras sob a justificativa de que a extinção ou redução das multas pode incentivar o desrespeito às decisões judiciais.
Ao julgar um pedido de impugnação de multa por descumprimento, o juiz Airton Pinheiro de Castro, da 12ª Vara Cível, afirma que se o montante da multa “atingiu maior dimensão, tal se deve exclusivamente à recalcitrância (resistência) da executada (operadora), de forma que, a ser acolhida a pretendida redução, seria desastroso o resultado, por importar inaceitável desprestígio à função jurisdicional, em detrimento de sua efetividade”.
Desobediência é conduta grave, diz especialista do Idec
Para Marina Paullelli, advogada do programa de Saúde do Instituto de Defesa de Consumidores (Idec), o desrespeito a uma ordem judicial é comportamento grave e deve ser apurado.
“A lei considera que o descumprimento de uma decisão é uma conduta grave. Na essência da regra, trata-se, ao mesmo tempo, de um desrespeito à parte que pediu socorro ao Poder Judiciário e também corresponde a um desprestígio da autoridade judicial”, diz.
Ela defende que o Poder Judiciário pense em mecanismos, já previstos em lei, que garantam a efetividade de suas próprias decisões.
“Orientações e enunciados, por exemplo, podem ajudar a organizar entendimentos para o trabalho do Judiciário, e, sobretudo, podem orientar como juízes e juízas devem agir diante de casos de descumprimento”, diz a especialista, referindo-se a entendimentos aprovados por órgãos judiciais que embasam decisões posteriores.
A dona de casa Maria Irene de Sousa, de 55 anos, passou pela angústia de não ter acesso ao tratamento necessário, mesmo com decisão judicial favorável. Diagnosticada com câncer avançado no reto (porção final do intestino) no início do ano, ela teve de interromper parte do tratamento e pagar do próprio bolso algumas terapias após a Amil se recusar a fazer a migração do plano.
O problema ocorreu porque, quando recebeu o diagnóstico, Maria Irene era beneficiária de um plano corporativo do marido, mas teve de solicitar a portabilidade do plano após o marido perder o emprego.
A operadora, no entanto, não quis realizar a migração prevista em lei e deixou o casal sem plano em meio ao tratamento oncológico da mulher.
Ela entrou na Justiça e obteve liminar favorável em abril, mas, até o início de agosto, a operadora não havia restabelecido o contrato.
A paciente conta que, no período, gastou ao menos R$ 20 mil com exames e procedimentos necessários para dar continuidade ao tratamento, mas que algumas etapas, como um procedimento cirúrgico, tiveram de ser adiadas.
“Não consigo mais dormir, não tenho forças para fazer nada porque sinto que não estou tentando todas as possibilidades que tenho para me curar justamente por estar sem plano. A gente fica de mãos amarradas. Nesse momento era para eu estar focada no meu tratamento e não passando esse desgaste com o plano de saúde, que deveria nos acolher nesses momentos”, afirmou à imprensa em agosto.
Somente após a reportagem contatar a Amil pedindo esclarecimentos sobre o caso, a operadora cumpriu a decisão e ativou o plano da dona de casa. Contatada novamente em novembro, a paciente afirmou que, desde agosto, o plano vem oferecendo todo os procedimentos necessários e com aprovações ágeis.
A empresa justificou que “não houve descumprimento da decisão judicial”.
De acordo com a companhia, “o que ocorreu foi uma inadequação do pedido inicial do beneficiário do antigo contrato, já que ele não tinha mais vínculo com o plano anterior fornecido por seu antigo empregador”.
Durante o processo, diz a operadora, “na medida em que a solicitação foi corrigida pelo próprio autor da ação, a Amil conseguiu solucionar o problema: não se tratava de uma migração, e, sim, de uma nova contratação. Atualmente, o plano está ativo e disponível para utilização sem carências”, informou.
Nos autos do processo, no entanto, o juiz não só confirma o descumprimento como aplica multa à empresa pelo comportamento.
Operadoras culpam prazos curtos e dificuldades logísticas pelos descumprimentos
Questionadas sobre os descumprimentos de decisões judiciais (a reportagem informou os números dos processos descumpridos), as operadoras afirmaram que respeitam as decisões judiciais e que eventuais atrasos no cumprimento das ordens devem-se a dificuldades logísticas e burocráticas, como prazos necessários para importação de medicamentos.
A Amil disse que “respeita e cumpre as decisões judiciais” e que “alguns casos elencados pela reportagem podem ter sofrido impacto nos prazos estipulados pelo juízo por questões operacionais que são alheias à companhia, como no caso de importação de medicamentos, cuja efetivação depende de autorizações sanitárias e aduaneiras”.
A SulAmérica disse que “cumpre todas as decisões judiciais” e informou que, dos casos levantados pela reportagem, apenas dois processos ainda estão em fase de cumprimento.
“Mesmo assim, a companhia está em contato com os beneficiários para os alinhamentos necessários. Os demais casos citados pelo jornal já foram plenamente atendidos pela operadora”.
Vale lembrar que a reportagem considerou em seu levantamento casos que tiveram descumprimento relatado nos autos em alguma fase do processo, já que alguns deles foram solucionados após sanções impostas pelos juízes diante do flagrante descumprimento.
A empresa disse ainda que “algumas decisões judiciais são concedidas com prazos muito exíguos para cumprimento, operacionalmente impraticáveis”, como importações de medicamentos não aprovados pela Anvisa.
A Prevent Senior disse que “tem por política o fiel cumprimento de todas as decisões judiciais, mesmo no caso de processos em que há recursos para instâncias superiores”.
A empresa justificou que, na lista de descumprimentos levantados pelo Estadão, “houve casos de não-atendimento por terceiros (prestadores de serviços) e outros em que não ocorreu a apresentação de documentos necessários pelos beneficiários ou que eles próprios desistiram das ofertas feitas pela empresa”.
A Prevent Senior disse “estar revisando todos os casos para corrigir eventuais falhas no atendimento aos reclamantes e garantir a prestação do melhor serviço”.
Também procurada, a Bradesco Saúde disse que “não comenta casos levados ao Judiciário”.
A NotreDame, por sua vez, já havia sido procurada em janeiro, na ocasião da publicação da reportagem sobre os processos descumpridos, quando afirmou que a empresa respeita o Poder Judiciário, negou o descumprimento sistemático de decisões judiciais e argumentou que apenas “exerce de forma ampla seu direito de defesa”.
Como revelado, a empresa é investigada pelo Ministério Público de São Paulo por conta dos descumprimentos.
O inquérito segue em andamento, de acordo com a Promotoria.
A Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) procurou o Estadão ao saber da reportagem por meio de suas associadas e também quis se manifestar sobre o tema. A entidade afirmou que “o acesso ao Poder Judiciário é direito sagrado de todo cidadão” e que defende o cumprimento de decisões judiciais.
A organização ressalta, contudo, que “o setor sofre com um volume expressivo de pedidos liminares que são, tecnicamente, indevidos, por vários motivos”.
“Sem pareceres técnicos, algumas decisões judiciais acabam autorizando quebras de cláusulas contratuais e até situações que ameaçam a segurança do paciente, em razão de possíveis prescrições inadequadas e/ou desnecessárias de tratamentos, medicamentos e marcas de materiais que não são indicadas para o adequado tratamento do paciente”, disse a entidade, em nota.
A associação cita como exemplo das práticas indevidas as fraudes cometidas por um grupo criminoso reveladas após operação da Polícia Civil do Rio de Janeiro, na última segunda-feira, 25.
“De acordo com a investigação policial, os golpistas recorriam ao Judiciário com pedido de liminar para que a operadora do plano de saúde autorizasse cirurgias superfaturadas e que, em alguns casos, nem mesmo existiram. O pedido de reembolso por serviços inexistentes e de procedimentos solicitados por médicos já mortos foram outras fraudes identificadas. Pelo menos quatro operadoras foram lesadas: Amil, SulAmérica, Bradesco e Golden Cross”.
As operadoras estimam que tiveram prejuízo de R$ 50 milhões com as fraudes cometidas pelo grupo.
Diante do cenário, a Abramge defende a expansão dos Núcleos de Apoio Técnico do Judiciário (NAT-JUS), “em que os magistrados têm a possibilidade de requisitar suporte a um corpo técnico especializado em questões relacionadas à área da saúde”.
A entidade diz ainda estar “à disposição do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) e do Poder Judiciário para buscar soluções e alternativas” para a judicialização na saúde suplementar.
Redação CNPL sobre artigo de Fabiana Cambricoli e Álvaro Justen
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