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O mundo vive um processo de brasilianização.
À primeira vista, essa frase pode parecer positiva, já que põe o Brasil como centro de referência para algo.
Mas, não se enganem, leitores: o que o nosso país exporta não é um estilo de vida inspirador, mas uma desigualdade social crescente e gritante, corrupção e um modo voraz de desenvolvimento. Em outras palavras, uma experiência de “terceiro mundo”.
Como Ben Davis sugere em seu artigo na Artnet, pense no filme Guerra Civil, que estreou este ano com Wagner Moura em um dos papéis principais.
Nele, fotojornalistas norte-americanos tentam cobrir atrocidades já conhecidas pelo sul global e, agora, testemunhadas no primeiro mundo.
Não é uma tendência da qual devemos nos orgulhar – o esforço deve ser de entendê-la para transformar-nos internamente.
Assim, quem sabe, “tornar-se Brasil” ganhe uma nova e positiva conotação.
Abaixo, tentamos explicar do que trata o termo há muito debatido por sociólogos e analistas políticos.
Confira!
O que é brasilianização?
A brasilianização é um termo usado por pensadores e pesquisadores há quase 40 anos para descrever um fenômeno de crescente desigualdade social e as condições políticas que a sustentam: um modo voraz de desenvolvimento social, uma elite sem qualquer compromisso com a sociedade ou com o desenvolvimento, corrupção, etc.
Quem nos explica isso é Alex Hochuli, analista político, escritor e coapresentador do podcast de política global Bungacast.
Em 2021, ele escreveu um artigo na revista American Affairs intitulado The Brazilianization of the World, que trata justamente sobre o tema.
“[A brasilianização] é o encontro do mundo rico e avançado com uma espécie de desenvolvimento que ele pensava que havia deixado para trás, mas que está a encontrar devido a um processo de declínio”, diz Alex a Casa e Jardim.
É um movimento contrário ao que já aconteceu com a globalização que fluía dos países desenvolvidos aos subdesenvolvidos ou em desenvolvimento – estes convergindo aos padrões de consumo, estilo de vida e normas liberais que lhes eram apresentados pelo norte global.
“No longo rescaldo da crise financeira de 2008 e, ainda mais com a devastação da pandemia, este não parece ser o caminho que estamos agora, seja econômica, seja politicamente”, escreve Ben Davis em seu texto.
A origem da brasilianização está no neoliberalismo, que levou a uma escassez de investimentos que, por sua vez, convergiu no declínio visto no Brasil e em outros lugares.
A brasilianização não se trata, assim, de um fenômeno autoconsciente, e sua origem coincide com a era neoliberal. Isso porque, na década de 1970, a classe capitalista se viu sem lucro e teve de abandonar o modelo social-democrata ou keynesiano, procurando lucrar de forma mais agressiva através da reestruturação, da desregulamentação, da privatização, etc.
“Isto levou a uma escassez de investimentos que é a causa imediata de grande parte do ‘declínio’ – que vemos no Brasil e em outros lugares”, afirma o analista.
Ele acrescenta que a brasilianização corresponde ao fim de um mundo centrado no trabalho – através do qual, no Brasil, a integração social deveria acontecer, mas nunca se tornou realidade.
Agora, é também essa realidade que se vê nos países ricos: precarização, terceirização, pessoas com dois ou três empregos etc.
“Mais profundamente, [a brasilianização] representa o fim das modernizações como um processo, algo que é provavelmente mais relevante para países como o Brasil e outros que esperavam se tornar ‘totalmente modernos’, mas sentem que nunca alcançaram isso”, comenta Alex.
Alguns problemas vistos por países que vivenciam a brasilianização são a crise habitacional, o aumento da corrupção e as infraestruturas fraudulentas.
O sentimento é compartilhado por países como Estados Unidos, França e Grã-Bretanha, que pensavam liderar o mundo, mas que, através da desindustrialização do declínio da capacidade estatal, de repente, deparam-se com problemas do tipo “terceiro mundo” na sociedade e política.
Isso inclui, segundo Alex, crise habitacional em massa, infraestruturas fraudulentas, aumento da corrupção, fim do consenso e uso do lawfare como meio de competição política.
Brasil, o país do futuro
Mas por que se usa o Brasil, em particular, como referência para o fenômeno?
Entre outras razões, porque somos um país de renda média, mas onde se vê o contraste da riqueza extrema e a pobreza em cenas do cotidiano.
Um exemplo disso é a icônica foto de Tuca Vieira que retrata a favela Paraisópolis lado a lado ao edifício de luxo Penthouse no bairro do Morumbi.
A fotografia viralizou e chegou a ser exposta no museu Tate Modern, em Londres, além de ser usada, ainda hoje, para ilustrar publicações sobre desigualdades econômicas e sociais.
Outra razão para tanto é que o Brasil é conhecido por ser o “país do futuro”, mas nunca chegamos verdadeiramente a esse destino.
Em seu artigo, Alex escreve: “somos oprimidos, como escreveu o falecido teórico cultural Mark Fisher, pelo ‘lento cancelamento do futuro’, de um futuro prometido, mas não entregue, de involução em vez de progressão. A involução do Ocidente encontra a sua imagem espelhada no país original do futuro, a nação condenada para sempre a permanecer o país do futuro, aquele que nunca chega ao seu destino: o Brasil”.
Essa sensação de que nada funciona como deveria, segundo Alex, é compartilhada por todo o espectro político – embora, no Brasil, a resposta tenha sido dar de ombros e continuarmos assombrados pelo que poderíamos ter sido.
Resumidamente, a brasilianização diz respeito à desigualdade, à informalidade do trabalho, às elites venais, à volatilidade política e ao descolamento social.
Já em termos políticos, o significado é patrimonialismo, clientelismo e corrupção.
A depender do autor, a brasilianização também se refere à gentrificação nas cidades e um impasse étnico entre uma classe trabalhadora racialmente mista e uma elite branca. Todos, infelizmente, fragmentos da realidade brasileira.
Brasilianização nas artes, comportamento e estilo de vida
Em sua publicação na Artnet, o crítico de arte Ben Davis discute o que o conceito significa para a audiência da arte contemporânea global, inclusive trazendo a curadoria de Adriano Pedrosa na Bienal de Veneza como objeto de análise a partir da lente da brasilianização.
Para ele, “Foreigners Everywhere” é um exemplar do discurso global de arte contemporânea definido pela necessidade de simbolizar o progresso, mas sem acreditar de fato nele.
“É um espetáculo permeado em todas as partes por ansiedades sobre a política reacionária global, mas que assume placidamente que o seu público global está de acordo com os valores progressistas”, escreve Ben.
Obra “Cardume”, de Ziel Karapotó, que está no Pavilhão do Brasil na Bienal de Veneza, é parte da exposição que narra a resistência dos povos originários do país — Foto: Arquivo Pessoal / Divulgação
Mas, quando perguntado sobre a manifestação da brasilianização nas artes e no comportamento e no estilo de vida, Alex afirma que é uma questão intrigante com a qual ele ainda está lutando. “Inicialmente eu diria que não [há relação], é uma transformação material/estrutural profunda, mas que ainda não provocou uma representação nas artes e na consciência”, diz.
Apesar disso, ele sugere que talvez a arte reflita o declínio, lembrando da música trap – que é muito high-tech, mas também pessimista, evocando apenas violência ou uma sensação de apatia e falta de motivação.
“Mas é claro que isso não está necessariamente ligado ao Brasil como tal (embora a adoção de algumas batidas e técnicas de funk pioneiras no Rio e, em menor medida, em São Paulo, por produtores norte-americanos, possa ser um exemplo)”, comenta.
Alex acrescenta que, como a brasilianização é também o fim da modernização, talvez a recente volta da arte para o primitivo, o indígena e o mágico se encaixe nesta história.
“Desistir da crença na racionalidade e razão, no desenvolvimento, no Iluminismo, etc. Os artistas brasileiros há muito brincam à margem disso com o fascínio pelos indígenas. Talvez o resto do mundo, à medida que se abrasileira, esteja acompanhando”, finaliza.
Redação CNPL com informações de expresso.arq.br
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